A Encíclica
.
O Papa Francisco presenteou a humanidade com a Encíclica Laudato Si, documento sobre o cuidado com a Terra, a nossa casa comum. Pessoas e organizações que que há anos vêm lutando pela justiça social e pelo cuidado com o meio ambiente leem, com grata alegria, que as palavras do papa referenciam suas lutas.
A humanidade tem a chance de ler uma palavra de preocupação e compromisso, mas também uma palavra de esperança em nome da vida, dom e graça de Deus, que tem o ser humano como guardador e cuidador.
Os seis capítulos da encíclica estão estruturados em três partes: a apresentação da realidade atual se encontra no capítulo 1; a avaliação da situação e de suas raízes, nos capítulos dois e três; e as propostas do documento, nos capítulos quatro a seis.
Seguem alguns pontos que julgo necessário partilhar com vocês:
A terra e os pobres estão feridos
O papa liga o cuidado com a terra ao cuidado com os pobres. Afirma que entre os pobres mais abandonados e maltratados, encontra-se a nossa terra, oprimida e devastada, que está gemendo como que em dores de parto[1]. O planeta ferido tem boa parcela dos seus habitantes também feridos pelas situações de grave injustiça social. O cuidado e zelo pela terra implica na continuidade do cuidado e zelo com os pobres e excluídos da terra, também vitimados por um modelo de desenvolvimento injusto e depredador. Não podemos desconectar a fragilidade do planeta da fragilidade dos pobres.
O progresso humano autêntico possui um caráter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção ao mundo natural e ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas[2]. Segundo o papa: hoje não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica se torna uma abordagem social que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para se ouvir tanto o clamor da terra, como o clamor dos pobres[3].
A crítica ao paradigma tecnocrático
A tecnologia não tem todas as respostas para os dramas humanos. Tem limites que se tornam cada vez mais explícitos, apesar de nos últimos séculos ter se insinuado como poder único. O filósofo alemão Jurgem Habermas na obra “Técnica e Ciência como Ideologia” revela esta limitação de ordem política. Afirma a necessidade de colocar o processo tecnocrático em sintonia com um projeto maior. É preciso algo mais do que a confiança cega na tecnocracia como único caminho para resolver os problemas humanos. A tecnologia tem um papel transformador, fruto da criatividade humana, pelo bem que fez à humanidade[4]. A boa orientação a faz contribuir para a melhoria significativa na vida do ser humano. Contudo, não podemos negar que os frutos da tecnologia se transformaram em estatuto de poder. Questiona-se o sentido deste poder e em que mãos está, pois é muito arriscado tanto poder nas mãos de uma pequena parte da humanidade[5].
A predominância do paradigma tecnocrático sobre a economia e a política gera consequências trágicas: a finança sufoca a economia real e propõe que os problemas ambientais e sociais serão resolvidos com o crescimento do mercado. O meio ambiente é objetificado pela exploração desmedida em nome do lucro. O ser humano tem valor enquanto produz ou enquanto consumidor do que é produzido. Contudo, o mercado não resolve tudo, mas por vezes enraíza situações extremas de desigualdades sociais.
É possível estabelecer uma ligação entre as palavras do papa e o debate sobre a questão agrária no Brasil, aliado a preocupação com a produção de alimentos. A agricultura brasileira produz muitos grãos, o que não significa produção de alimentos, pois a produção é em grande parte milho e soja, voltados para a exportação. Por outro, lado tem diminuído a produção de alimentos comuns à mesa do brasileiro. Não estamos nos alimentando de forma adequada porque o mercado tem arbitrado neste meio e condicionado a produção e consumo aos seus interesses. Comemos aquilo que o mercado quer que comamos e não aquilo que é o mais saudável.
O citado acima é um exemplo de como o referido paradigma tecnocrático intervém nas nossas vidas. Sugere o mercado como tribunal em que resolve todos os problemas humanos. Contudo este mercado de “mão invisível e justa”, segundo seus defensores, tem contribuído para a concentração de terras e o crescimento da injustiça social no campo, sobretudo, porque a terra tornou-se bem de mercado antes de ser lugar de construção da vida e da sobrevivência.
Superação do paradigma antropocêntrico:– ser humano como centro de tudo
O paradigma antropocêntrico se fortaleceu com o advento da modernidade. Tem como premissa o ser humano como centro da obra criada, aquele que define sobre o sentido das coisas. Tal superação implica em uma mudança cultural profunda, visto que a tomada deste paradigma no seu extremo elimina toda a possibilidade de reconhecimento de alteridades nas relações entres os seres humanos e destes com a natureza. Somos irmãos e irmãs, e a terra é nossa irmã e mãe. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano já não sente a natureza como norma válida, nem como um refúgio vivente[6]. O Papa faz a autocritica ao antropocentrismo e afirma que “não haverá uma nova relação com natureza, sem um ser humano novo”.
Sugere abertura da humanidade para um novo patamar, que contribuirá na superação da grande lacuna ente o ser humano e a criação estabelecida no advento da modernidade, quando a emancipação foi confundida com o domínio despótico de tudo o que era diferente da criatura humana. Esta compreensão marcou o domínio sobre os outros povos que tinham uma tradição cultural diferente da europeia.
Diante disso está o apelo para o uso responsável das coisas, o chamado a reconhecer os outros seres vivos com o seu valor próprio diante de Deus e, pelo simples fato de existirem eles O bendizem e lhe dão gloria[7].
A necessidade de debates sinceros e honestos
As cúpulas mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes[8]. Cabe superar a ecologia superficial ou aparente que consolida certo torpor e uma alegre irresponsabilidade[9]. É preciso ir além. Tomar decisões sérias que levem a uma nova forma de relação com o meio ambiente capaz de incluir as dimensões humanas e sociais, compreendida como ecologia integral.
O debate sincero e honesto leva a tomada de decisão e o necessário consenso universal ao qual todos os entes são convidados a construir. Neste processo o Papa lembra a grave responsabilidade da política internacional e local que devem priorizar os processos democráticos de tomadas de decisões, pois interessam a toda a humanidade.
A proposta de um novo estilo de vida
É o caminho para uma nova forma de relação com a natureza. O estilo de vida adotado e tido como padrão se revelou falho. Por um tempo o ser humano achou-se acima de Deus a ponto de quer excluí-lo da possibilidade de condutor dos destinos da humanidade. Ousamos querer tomar o mundo de Deus. Contudo vê-se que fomos muito incompetentes em administrar o mundo criação divina.
Cabe honrar a gratuidade divina cuidando com carinho e atenção desta dádiva que é nossa por algum tempo, mas que devemos deixá-la para as gerações futuras. Pois a cultura ecológica não pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo: degradação ambiental, esgotamento das reservas naturais, poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade[10].
A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura do Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses[11] e este é um ente em todo o projeto da criação, mas com a grave tarefa de zelar e cuidar a obra criada.
A encíclica e as novas atitudes para um novo mundo
A encíclica convida-nos a revermos nossas atitudes. É um desafio amplo que vai englobar toda a humanidade, começando com hábitos em nossa casa menor (lar), mas estendendo-se para todo o planeta. Esta renovação das nossas atitudes é fundamental. É a espinha dorsal da nova relacionalidade entre nós e com a casa maior. Seguem alguns passos:
I. A conversão ecológica. Implica em mudança de mentalidade e de coração em relação ao mundo criado. Devemos corrigir os rumos, os caminhos. Tem uma dimensão pessoal, mas também comunitária.
II. Superarmos uma visão de que o ser humano é o centro de tudo e assumir a capacidade de alteridade e gratuidade. Sair de si mesmo para encontrar o outro, a Criação.
III. Promover uma verdadeira educação ambiental voltada à sensibilidade e ética ecológicas e um espírito generoso, expresso no cuidado e responsabilidade com a Criação. Isto se manifesta na sobriedade do consumo, no uso da água, na separação do material reciclável. São pequenas atitudes em nome de algo maior, já sugeridas na Campanha da Fraternidade deste ano.
IV. Tal educação poderá ser efetivada na família, na escola, na catequese, nos ambientes da vida comunitária, nos diferentes lugares de encontro. São lugares de concretização da conversão ecológica.
V. Aproveitarmos com carinho e sobriedade os alimentos que a natureza nos dá. Podemos perguntar se em nossos lares estamos atentos ao desperdício de alimentos e água. No Brasil e no mundo perdemos muitos alimentos. Vemos gente morrendo porque come “demais” ou de forma errada e morrendo porque come “de menos”.
VI. As famílias são lugares especiais de se viver este novo espírito. No ambiente familiar a pessoa, desde a tenra idade, vai descobrindo o mundo. É possível insistir nos princípios do amor e do cuidado com a vida, do respeito ao outro que á também a natureza. Pequenos gestos e atitudes apreendidos na vida familiar ficam para sempre.
VII. Testemunharmos uma sociedade que fuja do princípio egoísta de vida para assumir o princípio de guardadora e cuidadora da obra de Deus como nos testemunha Francisco de Assis.
VIII. Termos uma atitude de sobriedade diante da tentação do consumo desenfreado. O desejo de experimentarmos cada novidade do mercado, como se essa determinasse o nosso grau de bem viver. Os recursos naturais são finitos. A forma como nos utilizamos pode decretar a escala de tempo da sua durabilidade.
IX. Consciência de que estamos morando “nesta casa” por um tempo. É importante nos preocuparmos de como deixaremos esta casa para os que virão depois.
X. Assumir uma verdadeira transformação pessoal voltada para a responsabilidade e consciência do nosso papel humano de zeladores de um Planeta doente, que tem uma parcela da humanidade também doente. O testemunho de cuidado do samaritano vale para a humanidade e para a casa da humanidade.
Concluindo
Recebemos um bom presente do Papa Francisco. O Documento aponta corajosamente, depois de constatar os graves problemas ambientais, um caminho para a humanidade. Faz isso não de uma forma autoritária, mas como contribuição sadia a todos nós. A própria construção do texto foi através de um processo dialogal.
Este diálogo prossegue através da leitura do documento quando todos são chamados a refletir a nossa condição em relação à casa comum. Podemos afirmar que é o sopro do Espírito Santo nos convidando a sair do casulo egoísta em que a humanidade se envolveu, que pode ser o seu fim, e abrirmos espaço para outra relação superando o racionalismo reducionista, que condena o planeta e a humanidade a extinção.