O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si’, propõe uma reflexão profunda sobre os desafios ambientais e sociais de nosso tempo. No Capítulo 3, intitulado “A raiz humana da crise ecológica”, ele analisa, criticamente, os fatores culturais, éticos e espirituais que contribuíram para a degradação ambiental e convida a humanidade a rever seus paradigmas de desenvolvimento e progresso.
O domínio da técnica: entre conquistas e excessos
A Encíclica reconhece os imensos benefícios trazidos pelo avanço tecnológico, como a melhoria das condições de vida e a superação de muitos males. No entanto, Francisco alerta que o domínio absoluto da técnica, quando não guiado por uma reflexão ética e moral, pode levar a graves desequilíbrios.
Ele define essa visão como o paradigma tecnocrático, caracterizado por uma confiança cega no poder da técnica e por uma lógica de exploração dos recursos naturais: “A técnica tende a fazer com que nada fique fora da sua férrea lógica, e o ser humano que nela se desenvolve é visto como um simples elemento a mais, subordinado aos interesses das finanças e do consumismo” (LS, 109).
Assim, os avanços científicos e tecnológicos alcançados deixam de ser aliados do bem comum para tornarem-se instrumentos de dominação e lucro.
O antropocentrismo desviado: uma visão limitada da realidade
Nesta encíclica, o Papa Francisco identifica na visão antropocêntrica moderna um dos principais motores da crise ecológica. Ao se considerar o centro absoluto do universo, o ser humano passou a ver a natureza como objeto de posse e exploração.
O Papa critica essa perspectiva, chamando-a de “antropocentrismo desviado”, e afirma: “Não se deve ignorar que a configuração antropológica moderna e a excessiva valorização da técnica criaram uma concepção da realidade que favoreceu a dominação abusiva sobre o ambiente” (LS, 116).
Para superar essa visão, ele propõe uma ecologia integral, que reconheça o valor intrínseco de todas as criaturas e promova uma relação de respeito e reciprocidade entre o ser humano e a natureza.
A conexão entre degradação ambiental e injustiça social
O Papa Francisco enfatiza que os problemas ambientais e sociais são interdependentes. A lógica do descarte, impulsionada pelo consumismo e pela busca incessante de lucro, afeta tanto o meio ambiente quanto os mais pobres e vulneráveis.
Ele expressa essa preocupação com clareza: “Não pode ser autêntico um sentimento de íntima união com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo no coração não há ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos” (LS, 91).
Assim, cuidar da natureza implica também cuidar das pessoas, especialmente das que mais sofrem com a degradação ambiental e a desigualdade social.
A conversão ecológica: caminho para um futuro sustentável
Percebemos que o capítulo 3 da Laudato Si’ culmina com um apelo à conversão ecológica, que não se limita a ações pontuais ou técnicas, mas implica uma transformação profunda de mentalidade, valores e estilos de vida.
Essa conversão é um convite dirigido a todas as pessoas e instituições, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa, solidária e em harmonia com a criação.
Por isto mesmo, vamos avançar em dois temas importantíssimos deste capítulo: o paradigma tecnocrático e o modelo econômico predatório.
Superar o paradigma tecnocrático: um apelo à responsabilidade
O Papa Francisco propõe que a liberdade humana seja utilizada para limitar e orientar a técnica, colocando-a a serviço de um progresso que seja “mais saudável, mais humano, mais social, mais integral” (LS, 112).
Essa mudança exige uma nova ética, capaz de colocar freios à exploração desenfreada da natureza e de promover políticas públicas orientadas pelo bem comum e pela justiça intergeracional.
Ao criticar o chamado “paradigma tecnocrático”, o Papa Francisco alerta para o fato de que a técnica se tornou uma espécie de ideologia autorreferencial. A técnica, ao se libertar de qualquer orientação ética, passou a moldar as decisões humanas, ignorando os ritmos naturais e as complexas relações ecológicas.
Nas palavras do Papa: “A tecnologia tende a absorver tudo que lhe serve de matéria-prima, com desprezo pelos ritmos naturais e pelas delicadas inter-relações entre os seres” (LS, 106).
Importante termos em mente que essa visão tecnológica autorreferencial cria a ilusão de que todos os problemas podem ser resolvidos por meio da inovação técnica, desconsiderando as dimensões sociais, éticas e espirituais. Estas essenciais para o cuidado integral do planeta, a começar pelos seres humanos.
O Papa destaca que “o ser humano moderno não está preparado para usar o poder com discernimento; o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores e à consciência” (LS, 105).
A Crítica ao Modelo Econômico Predatório
O paradigma tecnocrático está intimamente ligado ao modelo econômico vigente, que se caracteriza pela busca incessante de crescimento ilimitado e pelo consumismo exacerbado. O Papa Francisco denuncia que esse modelo promove a exploração intensiva dos recursos naturais e a exclusão social, afetando de forma desproporcional os mais pobres.
Ele afirma ainda que “o ambiente humano e o ambiente natural se degradam juntos, e não poderemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social” (LS, 48).
Essa lógica do “usa e joga fora”, característica da cultura do descarte, resulta não apenas na destruição ambiental, mas também na exclusão de pessoas e na concentração de riquezas. O Papa Francisco ressalta que “o mercado, por si só, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social” (LS, 109).
Além disso, o modelo econômico atual externaliza os custos ambientais, transferindo-os para as populações vulneráveis, muitas vezes nos países em desenvolvimento. Essa realidade reforça a desigualdade e fere o princípio da justiça social.
As Consequências da Crise Ecológica
A combinação do paradigma tecnocrático e do modelo econômico predatório desencadeia uma série de consequências graves para o planeta e para a humanidade. Entre elas destacam-se as mudanças climáticas, a poluição generalizada, a injustiça social e a erosão cultural. Essas consequências são interligadas e reforçam a complexidade da crise socioambiental.
Como bem enfatiza o Papa Francisco: “Não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental” (LS, 139).
Interessante perceber também que o Papa Francisco destaca que “um desenvolvimento tecnológico e econômico que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior não pode ser considerado progresso” (LS, 194).
Ao refletir sobre as raízes humanas da crise ecológica, o Papa Francisco nos convida a reconhecer que o futuro da humanidade e do planeta depende de uma mudança urgente e corajosa. A superação do paradigma tecnocrático e do antropocentrismo desviado é essencial para construir um mundo onde a técnica esteja a serviço da vida e da dignidade de todas as criaturas.
Como ele afirma: “Tudo está interligado, e todos somos irmãos e irmãs” (LS, 92).
Essa consciência deve inspirar uma nova cultura do cuidado, pautada pela responsabilidade, solidariedade e respeito pela Casa Comum.